Crónica

Dou por mim de novo a vestir aquele kispo e a fazer o velho caminho inclinado no ar gelado único do vale em que cresci, em acelerada e paralisante expectativa; sou de novo o pequeno embrulho branco guiado por aquela mão forte: e, num só instante que parece eterno, rendo-me ao familiar misto de nostalgia e falta a que, neste pequeno rectângulo à beira-mar plantado, nos habituámos a chamar a mais bela palavra: saudade.

Há coisas que, por motivos misteriosos, nunca esquecemos. Critério complexo ou aleatoriedade, não sei, nem a ciência o sabe ao certo; mas a verdade é que informação que desejamos activamente recordar nos foge frequentemente por entre os dedos da mente, enquanto momentos e pormenores aos quais não conseguimos sequer atribuir qualquer impacto óbvio se colam a nós para sempre, para melhor ou para pior.

Lembro-me como se fosse ontem da forma como a minha mãe me preparou para o meu primeiro dia na “escola dos grandes” (era assim que, na primária, chamávamos ao humilde conjunto de edifícios para onde iríamos no 5.º ano, e que nos parecia tão desproporcionalmente avassalador: “a escola dos grandes”). Lembro-me da cor do kispo que apertou com força à volta do meu coração assustado: talvez, num instinto irracional de mãe, para o impedir de saltar para fora; lembro-me das folhas que, no chão, anunciavam pesadamente o Outono, em tons castanhos atenuados por gotas de chuva passada; lembro-me, acima de tudo, da mão forte do meu pai na minha, uma para sempre tão maior do que a outra. Reconhecia aquele aperto; era o mesmo que me dava quando me levava ao dentista, ou quando eu me magoava, ou noutras alturas – tão raras, pobre velha alma a minha – em que eu me permitia ser parecida com a minha idade e, por algum motivo, tinha medo. Era um aperto quente, firme; um aperto que mantinha o mundo no sítio e não me deixava chorar.

Ainda hoje, quando me encontro perante decisões que me obrigam a questionar e definir a minha identidade, dou por mim a lembrar-me desse calor incondicional dos pais que me puseram no mundo, da inocência que já foi e não volta mais. Dou por mim de novo a vestir aquele kispo e a fazer o velho caminho inclinado no ar gelado único do vale em que cresci, em acelerada e paralisante expectativa; sou de novo o pequeno embrulho branco guiado por aquela mão forte: e, num só instante que parece eterno, rendo-me ao familiar misto de nostalgia e falta a que, neste pequeno rectângulo à beira-mar plantado, nos habituámos a chamar a mais bela palavra: saudade. Saudade de achar assustador aquele pobre edifício de uma pequena cidade – saudade de não o saber apenas um pobre edifício de uma pequena cidade –, quase tanto como saudade dos nadas ingénuos que me faziam feliz; saudade, enfim, do cheiro da infância, dessa fragrância indefinida que acredito que todos conhecemos: numa essência variável de alma para alma, talvez, mas sempre salpicada pela mesma doçura.

E, mais do que tudo, talvez mais do que tudo na vida, saudade daquele aperto, o literal e o metafórico, e das duas pessoas ao meu lado que, com ele, mantinham o meu mundo no sítio. Ao fim de todos estes anos, por mais que alcance e conquiste pelos meus pés e com o meu fogo, ainda inicio cada viagem tirando um momento para respirar fundo e perceber, sempre pela primeira vez, que há caminhos que tenho de fazer sozinha, independentemente da distância, da inclinação, do frio. Do medo. Por vezes, porém, o mais pequeno fantasma daquela criança, daquele vulto pequenino embrulhado em ansiedade e expectativa, surge num dos lados da encruzilhada, e oiço-o dizer, numa voz que é a minha: “Não é isto que tu és; não foi por isto que foste feita; não foi para isto que foste criada, amada; lembra-te; lembra-te”. E, tão simplesmente assim, escolho novamente quem sou, e percebo que, afinal, o velho aperto ainda me mantém no sítio: para sempre, em mim.

Sim, há memórias que nos ficam para sempre — ou talvez sejamos nós que lhes ficamos.